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A PRÁTICA ROTINEIRA SUGERIDA POR                            SIDNEY HARTH

          Não é novidade que Harth gostava de variedades e de manter seus alunos ocupados praticando coisas diversas quase simultaneamente. A quantidade e qualidade variava com a capacidade dos alunos. Assim manifesta eles sobre esse assunto:

 

          Esses três ou quatro projetos se dividem da seguinte maneira: o primeiro, um estudo - e no caso do violino, os exercícios ditos "desatualizados" que ainda considero muito úteis e importantes como quando os trabalhei. Há um grande valor em bíblias técnicas como Kreutzer, Mazas, Wohlfart. Minha única crítica a esses volumes é que eles são frequentemente impressos de maneira chata, espremidos em páginas apertadas e dependem de muitos símbolos impressos que não têm significado a menos que explicados pelo professor. Além disso, há muitos dedilhados enganosos, indicações, erros de impressão e impossibilidades reais até mesmo para um virtuose experiente nesses volumes indiscutivelmente necessários. Talvez as exigências de novas impressões façam com que sejam configurados em um novo tipo, de modo que esses defeitos gerais sejam eliminados, as deficiências apagadas e os textos clássicos tornem-se assim muito mais atraentes para o jovem estudante.

 

          Enquanto o aluno está trabalhando em um ou dois estudos semanais (e certamente é ridículo entrar em ordem numerada, ou tentar tocar todos os caprichos de um volume antes de ir para outro livro), ele estará trabalhando em escalas ao mesmo tempo. Não acredito em escalas como o princípio técnico principal e definitivo, mas sou antiquado o suficiente para perceber que há um número infinito de aplicações práticas de escalas (e claro, arpejos, cordas duplas e tudo que vai com eles) para ser encontrado em qualquer concerto ou sonata. Espero, no entanto, que alguém acabe se dando ao trabalho de incluir em manuais futuros escalas em quartas, quintas e nonas, intervalos que são marca registrada da música contemporânea. Encorajo os alunos mais avançados a trabalhar em escalas começando com notas estranhas à tonalidade, a iniciar escalas com qualquer dedo em qualquer corda e inventar suas próprias variações na prática de escala. Com a destruição iminente do sentido da tonalidade, pode-se ver prontamente a praticidade de, por exemplo, incluir o Sol sustenido em uma escala de Dó maior, ou iniciar o Mi menor com um Mi bemol!

 

          O terceiro projeto que o aluno tentará dominar diz respeito a um problema particular que é hora de ele pensar, ou alguns enigmas espinhosos como trinados, vibratos, variações de arcadas, etc, (E todas as teses podem ser ensinadas! ) E, por último, ele será conectado a algumas grandes obras solo, ou partes de peças de câmara. E, neste caso, tento usar diligentemente o melhor material possível. Eu acredito firmemente em uma criança de 12 anos lutando para aprender uma sonata de Haydn ou Mozart - (embora ele não esteja pronto para isso musicalmente - e, em muitos casos, tecnicamente!) - o pensamento subjacente é que a associação com os mestres é uma experiência inesquecível e será útil para percepção estilística em anos posteriores. Além disso, eles sabem o que é bom! Incutindo bons gostos nos alunos quanto à escolha do material e dando a eles uma ideia da concepção do estilo, posso então sentir que algumas incluem a compreensão e o respeito pelos grandes compositores (e intérpretes) e o resgate de um bom número de alunos das armadilhas e a areia movediça do esnobismo tão facilmente adquirida nas aulas passivas de música.1

 

          Harth também adotava em princípio parte do mesmo repertório sugerido por Auer, pois foi aluno de Knitzer e Michel Piastro entre outros. O repertório sugerido por Auer ainda hoje é válido para quem deseja ter um estudo do violino sério, acadêmico. Basta acrescentar algumas composições do século vinte. É apresentado com muita clareza no livro “El Violin”,2 páginas 196 e 197, no capítulos 13 e 14 de seu livro “Tocar Violino Como eu o Ensino”,3 das página 89 à 99, e em outro livro de sua autoria, “Obras Principais do Violino e Sua Interpretação”.4 Além dos livros anteriormente citados sobre o assunto repertório de violino eu recomendo a leitura do capítulo 3, do livro “A Escola Russa de Violino, o Legado de Yuri Yankelevich”,5 escrito por Maya Glezarova, das páginas 171 a 175.

 

          Harth também teve grande influência do estilo de Enescu, seu outro grande professor. Mas não era preso às ideias deles, aceitava as escolhas dos alunos. Todos os anos pedia uma lista do que eu gostaria de tocar e depois colocava as músicas em uma ordem de possibilidades. Detestava que um aluno iludisse a si mesmo com desafios impossíveis. Só acatava os desafios possíveis de serem atingidos com qualidade essencial. Usava estudos de Dont Op. 35 e os de Gaviniés, assim como os Caprichos de Paganini. Adorava as transcrições de Heifetz e eu era obrigado a tocar ao menos quatro por ano. Costumava exigir dois concertos diferentes, duas sonatas com piano, uma sonata para violino solo e uma peça longa. Este era o repertório mínimo a se aprender a cada ano.

 

          É interessante ler a entrevista dada por Harth a Samuel Applebaum publicada no volume 5 da coleção "The Way They Play" (A Maneira Como Eles Tocam)6. Aqui apresento um pequeno trecho:

 

Applebaum questiona:

“Vamos voltar aos seus anos de aluno. Que estudos você praticou?”

 

Harth:

“Todos os mais conhecidos: Kreutzer, Rode, Fiorillo, Dont, Gaviniés, Paganini e mesmo aqueles de Dancla, Saint-Lubin, ambos livros de Wieniawsky e as menos conhecidas 60 'Variações sobre um Tema' de Paganini.”

 

          Harth aconselhava a prática constante e regular de estudos ao violino, não somente para de melhorar a técnica, mas também que por serem em muitos casos repetitivos, estudos são um grande desafio à memória, pois podem confundí-la com muita facilidade. São a melhor maneira de se desenvolver a técnica de memorização e a capacidade de expressão artística, pois cabe ao aluno transformá-los em “música”, em “arte”.

 

          Um professor de violino deve ter como projeto principal de ensino desenvolver várias habilidades em seus alunos. A de aprender rápido e de memorizar estão entre as mais difíceis de ensinar. Depende de muitos fatores que estão fora do controle do professor. Mas é possível usando as técnicas de ensino corretas. Neste caso o professor imprime uma mudança total de hábitos nos alunos e muitas vezes na família. Assim procede o método Suzuki. A principal mudança é fazer que os alunos acreditem em seu próprio potencial, que eles sempre podem fazer mais e com mais qualidade. É um trabalho constante de motivação. Harth sempre procurava motivar os alunos com novos desafios.

 

          Certa vez Harth contou um fato sobre sua infância ao violino. Aos nove anos teve que decorar a pedido de seu professor todos os estudos de Kreutzer independentemente. As diversas escalas também. Seu professor costumava promover pequenas competições entre os alunos para ver quem tocava mais afinado e correto. Ele tinha em sua casa um teatro de bolso, com um pequeno palco. Uma vez que havia decorado todos os 42 estudos de Kreutzer, Harth teve que subir ao palco e tocar todos sem parar de memória. Assim era o ensino antigo.

 

          Harth atribuia a este treinamento na infância sua memória fenomenal!

 

          Sua técnica de memorização era simples. Primeiro decora-se um ou dois compassos da primeira linha e repete-se o processo com o restante então unindo todos eles até o a obtenção da primeira linha de memória. Depois passa-se para a segunda linha e assim sucessivamente até ter todo o estudo decorado.

 

          Ainda falando sobre estudos, certa vez em tom de crítica, Harth comentou que hoje em dia os alunos não praticam nenhum tipo de estudos preparatórios (não recordo os nomes dos estudos por ele citados, foram vários) e já estão prontos para tocar Paganini!

 

          Harth não dava aulas para crianças, a menos em festivais com o objetivo de incentivá-las, pois não considerva-se um bom mestre para esta faixa etária.

 

          Sidney Harth costumava dizer que um bom violinista, em nível profissional, deveria praticar com inteligência e no máximo quatro horas por dia. Em nível universitário, com objetivo de aprender o máximo possível de repertório profissional, seis horas. Ele dizia que qualquer coisa além disso era perda de tempo e que o cérebro se cansa e deixa de absorver as informações, assim como a musculatura também se cansa. Deste modo afirmo, com base em meu convívio com este grande mestre do violino, que o equilíbrio emocional na prática do violino é essencial ao sucesso.

 

          Para Harth, a abordagem de uma peça jamais deveria começar com o ouvir de uma gravação, para se obter uma interpretação já pronta. O aluno deveria partir da compreensão do texto escrito na partitura. Somente após já ter desenvolvido sua própria concepção da peça poderia então ouvir a gravações. Mas somente a título de comparação de idéias e eventualmente absover alguma idéia musical que pudesse ser melhor artisticamente.

 

          Também tocava piano. Ele conhecia a história das edições musicais como ninguém. Cada aula com ele era uma lição de musicologia sobre a edição usada e dos desejos do autor sobre sua música. Era muito aberto a novidades. Todos os dias aprendia algo novo. Sua memória era fantástica!

 

          Dois pontos importantíssimos para Harth eram as escolhas de arcadas e de dedilhados. Em primeiro lugar ele analisava a música, o estilo, a frase e sua harmonia, a parte do piano ou a da orquestra. Depois refletia sobre como fazer o violino soar, como a mecânica, como a física vibratória do violino e do arco permitiriam o melhor e mais claro resultado em cada detalhe. Só então começava a marcar arcadas e dedilhados. É obvio, com a experiência e inteligência que ele tinha este era um processo muito rápido! Era como uma fagulha em um isqueiro! Mesmo assim não deixava de corrigir o que ele mesmo considerava uma decisão de arcadas e dedilhados falhas. Era humilde o suficiente para reconhecer uma falha. Mas depois de encontrada a solução definitiva nunca mais mudava. Também incentivava que os alunos buscassem por suas próprias decisões de arcadas e dedilhados e só costumava intervir naquilo que definitivamente não soava bonito. Assim cada aluno desenvolvia seu universo único de gosto musical, interpretação e expressão. Até mesmo na técnica de cada aluno ele intervia pouco. É possível reconhecer os alunos de Harth, mas todos são artistas únicos!

 

          Conhecia a técnica de arco como poucos, e não a usava com intuitos virtuosísticos apenas, mas principalmente musicais. Cada nota tinha que soar com absoluta clareza e beleza. Quanto a isso discutia muito sobre a energia gasta pelo arco para tirar uma corda do estado inerte e fazê-la vibrar de modo amplo, em toda sua gama, com sonoridade projetada, mas sempre com timbre bonito e de acordo com as nececidades do fraseado musical e estilo. Insistia muito sobre como fazer vibrar as notas de pouca duração rítmica, que tendem a ser mascaradas, a falhar. Sua solução era em geral aumentar a quantidade de arco e de pressão do mesmo sobre a corda nestas notas. O ataque no início de ligaduras também era muito trabalhado para não falhar a primeira nota. Em sequência de ligaduras mandava acentuar a primeira nota de cada ligadura. Dependendo da situação, como na sonata de Prokofiev 94-A, segundo movimento, Scherzo, literalmente aconselhava a bater o arco sobre a primeira nota de cada escala. Dizia que sem isso a primeira nota tornava-se inaudível.

 

          Quanto à mão esquerda gostava muito de usar a regra de simetria, ou seja, de usar o mesmo número de notas em cordas paralelas. Isto facilita muito a distribuição do arco e a ressonância. Usava um vibrato de amplitude apertada e muito rápido, quase impossível de imitar. Quanto aos trinados pregava que o dedo da nota real deveria ser cravado na corda e que nunca se deve balançar a mão para ajudar na execussão do trinado. Somente os dedos devem mover-se.

 

          Era absolutamente contra o uso de espaleiras mas não impedia que seus alunos fizessem uso delas caso desejassem.

 

          Como era adepto da escola de Auer, Harth era extremamente elegante ao palco. Adotava a posição tradicional dos pés e da postura corpo muito bem descritos no trabalho de Karl Couvousier:7

 

          O intérprete deve ficar ereto, com o peso do corpo apoiado no pé esquerdo. Seu pé direito deve repousar no chão, um pouco para a frente e para a direita, e ligeiramente inclinado para o pé esquerdo. Esta posição garante solidez e resposta para o lado esquerdo, sobre o qual o violino repousa, e a liberdade para o direito, que é necessária para o manuseio adequado do arco. Não deve haver flacidez nos músculos da metade superior do corpo; o peito deve ser jogado para fora, para permitir a liberdade na respiração, e a cabeça deve ser mantida ereta, inclinada, se for o caso, para a esquerda sobre o violino, em vez de para a direita. Essa posição da cabeça, além de ser a mais graciosa, torna a leitura das notas mais fácil do que qualquer outra.

 

          É interessante a continuação desta breve descrição da posição do violino ao corpo:

 

           A extremidade larga do violino deve ser colocada bem para cima na clavícula esquerda e mantida na posição adequada, tão firme quanto possível pela pressão do lado esquerdo da mandíbula - não do queixo - que deve repousar sobre a barriga do instrumento, à esquerda do estandarte.

 

           Harth gostava de usar padrões de dedilhados e de arcadas nas músicas. Ele acreditava que o cérebro não é capaz de absorver uma quantidade infinita de possibilidades variadas. Sem o uso de padrões o violino se torna um labirinto sem saída. Se posssível e se os estilos permitissem, que não fossem conflitantes, os mesmos padrões de arcadas e de dilhados deveriam ser usados em músicas diferentes. Por mais contraditório que isto possa parecer, não cria estilos de execussão iguais, repetitivos, desinteressantes e aborrecidos! Cria sim um processo muito fácil e inteligente de se executar o violino!

 

           Sidney Harth ensinava seus alunos a como resolver seus próprios problemas. Em primeiro lugar preocupava-se com a saúde física de seus alunos, demonstrava como aquecer apropriadamente as mãos e braços antes de tocar, com o objetivo de evitar lesões. Seguia o conselho que na juventude recebera de Heifetz de praticar escalas diariamente, com regularidade. Heifetz disse a ele que quando se fica velho é das escalas que o violnista precisa. Acima de tudo Harth ensinava como encontrar as melhores soluções de arcadas e dedilhados, combinando-as, para assim fazer brilhar as intenções do compositor, fazendo aflorar o estilo da música em questão, sem que o artista, no caso o aluno, perdesse sua individualidade. Ele dava autonomia a seus alunos e esperava que paulatinamente adquirissem independência dele próprio.

 

 

 

 

1 - Sidney Harth, Music Teaching: Taste, Trial, and Truth, Perspectives in Music Education, Source Book III, Published by Music Educators National Conference, 1966, pgs. 244 e 255.

2 - Pascuali e Principe, El Violin, Ricordi Americana,1952, pgs. 196 e 197.

3 - Leopold Auer, Violin playing As I Teach It, Dover Publications, Inc, NY, 1980, capítulos 13 e 14.

4 - Leopold Auer, Violin Master Works and Their Interpretation, Carl Fischer, Inc, NY, 1925.

5 - Yuri Yankelevich, The Russian Violin School, The legacy of Yuri Yankelevich, Translated and Edited by Masha Lankovsky, Oxford University Press, 2016, Capítulo 3, pgs. 171, 172, 173, 174, 175.

6 - Samuel Applebaum e Henry Roth, The Way They They Play, Book 5, Paganiniana Publications, Inc, 1978, pg. 121.

7 - Karl Courvousier, The Technique of the Violin Playing - The Joachim Method, Dover Publications, Inc. Mineola, NY. 2006, pg. 7.

marcos15271308

17 de jul. de 2021

Muito bom o texto, traz a tona muitos elementos básicos, mas que são dúvidas de numerosos alunos, assim como eu, uma grande fonte de consulta diária para reforçar informações da parte mais importante da arte do violino: a base, sem ela, quaisquer repertórios avançados que forem colocados, não sairão.

Alexandre Sinicio

17 de jul. de 2021

De fato, estudos que focam pontualmente em apenas um problema ou matéria a ser estudada tende a ser grave e contraproducente. A razão, ou uma delas, é absolutamente óbvia e simples.

Quando o foco é unitário, a matéria especifica é trabalhada, coloca-se lenha e fogo neste ponto, porém ao se passar para outro item, quando supostamente já se obteve êxito razoável... o que fora abandonado, e o termo é este mesmo, abandonado, começa a perder memória muscular, sinestésica, o que estava em brasa pelo foco começa a virar cinzas e fatalmente em algum momento terá que ser revisitado e revisitas constantes onde a razão delas é a desordem, o não domínio, a frustração é o resultado emocional...

Um atraso que de certa forma pode ser planejado, ou por ignorância ou para esconder o que, como professor (daqueles duvidosos), não se sabe ou não se quer transmitir...

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